segunda-feira, 2 de janeiro de 2012

Fotografias

Por Vanessa Coutinho

   Ainda não são oito da noite, e a chuva que cai é absurda. Absurda porque intensa, fria e completamente inesperada. Preocupada com a possibilidade de uma queda de luz, remexi nas gavetas em busca de velas, e, antes de encontrá-las, encontrei o que restou das fotos. Num cantinho, as velas. E, por baixo das velas, os palitos de fósforo. Há um mês, organizei meu pequeno ritual, embora não tenha conseguido mantê-lo até o fim. Rasguei os retratos, e os amontoei dentro de uma forma forrada com papel de alumínio. Acendi o primeiro palito de fósforo, e fui queimando os pedaços, com uma sensação no corpo que não saberia dizer se era prazer ou dor. Não chorei. Há muito tempo não choro. Na verdade, não sou capaz de lembrar de ter chorado algum dia. Enquanto queimava o rosto de minha mãe, a lembrança das surras em que dizia que só pararia se eu chorasse, era absolutamente presente. Mas eu não chorava. Ela batia até cansar, até sua mão arder, e ela própria chorar, frustrada, porque eu não derramava uma única lágrima. Não sei que força insana se apoderava da minha cabeça, eu então com nove ou dez anos, e que fazia com que toda a intensidade da dor fosse meu escudo. Eu forjava a armadura interna que me acompanharia para sempre. E ela, exausta, por um lado vencida, por outro aliviada, depois de usar meu corpo como continente de sua ira, ia se trancar no quarto, gritando que eu, com minha maldade, um dia a mataria de desgosto.
   Minha maldade fazia coisas como cortar os cachinhos pretos do cabelo de Manoela. E isso nem doía. Manoela, nesta época, talvez não tivesse ainda cinco anos. Era minha irmã, filha de minha mãe e daquele homem que faço questão de não pronunciar o nome, porque ele nunca fez questão de saber o meu. Chamava-me de coisinha, menina ou diabo, de acordo com seu humor e o resultado das apostas. Dinheiro ele tinha, porque Manoela estava estava sempre tão bonita, com vestidos novos, brinquedos novos... Vestidos e brinquedos que eu, na minha maldade, rasgava e quebrava. E outra surra vinha. Manoela, com seus olhos redondos, ficava meio escondida atrás das portas, a boca aberta, olhando o bizarro espetáculo. E, muitas vezes, enquanto minha mãe se trancava no quarto para se lamentar e chamar por ela ("Manu, minha princesa, onde você está?"), com um mel na voz que eu nunca conheci, ela chegava perto de mim, aquele trapo cheio de manchas roxas que eu era, e estendia a mão delicada para acariciar meus cabelos arrebentados pelos puxões. Ajeitava-os como podia e, só depois, ia atender aos chamados que ecoavam pela casa. Eu, imóvel, olhava aquela criatura infinitamente bela, e, muitas vezes, desejei que morresse. Não por ela, mas para que minha mãe sofresse. O homem, acho que não sentiria falta dela. Se não a chamava de diabo, como a mim, por vezes a classificava de chorona, e reclamava de que para sustentar aquela coisinha miúda, a mulher lhe exigisse tamanhos valores. Hoje, sei que o simples fato de participar, como espectadora, daquelas cenas quase diárias, deixou na menina tantas marcas roxas quanto em mim. E, na minha maldade, me sinto um pouco vingada.
   Quando, enfim, eu podia erguer o corpo do chão, ia até o quarto e olhava a foto de papai. Seus cabelos louros, seus olhos azuis. Tão alto e forte que seria capaz de arrastar um carro. Desconfiei de Deus quando me dei conta de que papai se fora antes de que minha mãe tivesse a chance de avisar-lhe da gravidez. Mas a figura da foto era meu pai, e ele sorria de um modo que amenizava as dores. Então, durante a infância, e até hoje, enquanto as outras pessoas rezam, eu converso com a foto, e Deus tem a cara do meu pai. Ou melhor, meu pai tem a cara de Deus, porque meu pai é real, e eu sei também, com toda certeza do mundo, que se ele soubesse de mim, me amaria e protegeria. E essa certeza foi toda a fé de que fui capaz...
   Ouço o telefone tocar. Talvez seja o Edu. Hoje, ele vai para Tóquio. Para sempre. Para nunca mais. Como eu gostaria de que ele, de uma vez por todas, me tirasse deste lugar cheio de fantasmas. Chego perto do aparelho, o coração aos pulos, numa tentativa de alegria. Não atendo. Talvez seja ele. Talvez não. Atender é uma aposta alta demais.
   Agora, o aparelho emudeceu. Pensando bem, tenho certeza de que era ele. Toda certeza do mundo. E esta certeza é toda fé de que sou capaz.

domingo, 1 de janeiro de 2012

Triângulos

Por Vanessa Coutinho

   Ela acorda sobressaltada. Coração aos pulos. O grito que não emite morre em um soluço estrangulado entre a gargante e a boca. Quando dá por si, está sentada na cama, os longos cabelos sobre o rosto, as mãos agarradas ao lençol. A penumbra que envolve o quarto provoca uma tênue sensação de acolhimento. Ela sempre preferiu a penumbra à muita luz. Uma das mãos, ainda levemente trêmula, afasta do rosto os cabelos, e desce, reconhecendo a nuca, o ombro, e parando no colo, um pouco acima da linha dos seios, como a tentar controlar o descompasso do coração. Deixa que dois ou três minutos se vão, busca a lembrança de algum sonho ruim que possa ter lhe atravessado o sono, mas não lembra de nada. A sensação de ameaça ainda flutua em torno, preenchendo os espaços vazios. Ela está quieta, mas atenta. Imóvel, apenas observa. Parece um bicho que farejou o perigo no ar. É claro que o perigo tem um cheiro, e fora este cheiro que a acordara.
   A mão sobre o colo recolhe o pequeno escapulário e, automaticamente, a oração se impõe: "Ave Maria, cheia de graça...". Apenas se movem os lábios, não há nenhum som, a voz está aprisionada. Mentalmente, repete a súplica três vezes: "Santa Maria, mãe de Deus, rogai por nós, pecadores, agora, e na hora de nossa morte". Sente, por instinto, que o medo que a despertou é um medo do qual só uma mulher seria capaz. Talvez, por isso, tenha clamado por um nome de mulher.
   Deixa que o corpo vá deitando novamente. O mal-estar é bem menor do que já fora, mas permanece. Angústia. Vira de lado e vê os cabelos do homem que dorme sem perceber o cheiro de perigo. E o amor que ela experimenta é tão profundo que chega a doer. Esse amor não é escandaloso, não é tempestuoso. Ele se abriga no fundo, onde nenhum outro querer jamais chegou. Será esta a ameaça? Seu olhar percorre aquele corpo, e se detém nos detalhes do grande Pégasus tatuado. A quarta parte da costas tomada pela figura, de traços precisos e cores exatas. Apenas um detalhe, pequeno, mas determinante, alimenta a sombra em sua alma. Pégasus, tatuado no corpo do homem. No corpo do Pégasus, tatuada a letra A. Houve um dia em que ela não pode se conter, e perguntou o que significava o absurdo, o incômodo A. O homem riu, brincou: "Mas seu nome não é Ana?". Ela não achou graça. Quando o conheceu, ele já trazia a tatuagem. Ele já trazia uma história, não se criou no momento em que se viram. E ele, percebendo sua contrariedade: "É A de Adriano. É o A do meu nome". Mentira! É mentira, mas ela trava uma luta interna para não duvidar. Para acreditar naquilo que sabe não ser verdade. Insuportável olhar este A agressivo, violento, numa noite como esta, em que o cheiro de perigo é tão intenso. Pela luminosidade que atravessa a cortina, tenta adivinhar a hora. Mais fim de madrugada do que começo de manhã. Arranca seu corpo da cama e caminha até a janela. Sente frio, e uma certa apreensão.
   Na rua quase deserta, apenas dois homens. O ar parado, nenhum vento. Ao chegar à janela, é capturada pela cena, e agora fará parte dela para sempre. Um dos homens de pé, o outro no chão. O primeiro segura um faca. O outro agoniza. E ela, olha. Quer seguir o inverso de seus passos, voltar para a cama, se aninhar. Mas está presa, incapaz de mover um único músculo. O ar se torna ainda mais pesado. Torce para ser achatada, derrubada, mas nada acontece. O homem com a faca parece tão tranquilo quanto um padre ao fim da missa. "Ave Maria, cheia de graça...". Os três, presos em um círculo mórbido. Livre, Adriano dorme a quilômetros de distância. Por quê não acorda? Onde está aquele com quem se comunica sem palavras, justo agora, quando as palavras não estão ao seu alcance? Como quem ouve um chamado, o homem com a faca na mão levanta o rosto, olha para ela. Por uma eternidade, se dizem palavras silenciosas e, da mesma forma que ela jamais esqueceria aquele rosto, soube que tampouco ele esqueceria o seu. Sobre uma poça de sangue, o terceiro elemento, o terceiro vértice do triângulo, termina de morrer. Quando, enfim, cala seus ruídos de agonia ("Rogai por nós, pecadores..."), e a madrugada volta a seu silêncio, o homem com a faca descola seus olhos dos dela, olha para o outro e cospe sobre ele. Lentamente, sem pressa, começa a caminhar em direção ao centro da cidade.
   O corpo parece se enraizar no chão. Lágrimas muito quentes ardem em contato com sua pele fria. Ao desaparecer, o homem com expressão plácida desfez a teia e ela pôde, com passos incertos, voltar à cama. Que horas seriam? Mais começo de manhã do que fim de madrugada. Deitada, começa a imaginar que, neste momento, em algum lugar, uma mulher está à espera de quem não irá. Sente-se em comunhão com essa desconhecida, talvez inexistente, e toda a dor que acredita que ela sentirá, sente antes. Rouba da outra o direito ao primeiro luto, ao primeiro desespero. "Bendita sois vós entre as mulheres...". O sol que nasce torna o quarto cada vez mais claro e quente. Estivera ligada por fios invisíveis à dois homens. Agora, unia-se à uma mulher suposta e a um homem morto. Está sempre amarrada a tramas de três fios, embora não as deseje. Deseja apenas ligar-se a Adriano, acordá-lo, abraçá-lo, pedir que não se vá, que nunca morra, seja por morte ou por vida. Mas ele dorme. "Rogai por nós, pecadores, agora, e na hora de nossa morte".
   O pranto explode, impossível conter mais. Grita e treme como uma possessa. Adriano, enfim, acorda. Abraça com sua pele quente aquele corpo gelado. O ar não é mais tão pesado, mas o cheiro de perigo não se desvanece assim tão rápido. Ela se agarra ao corpo do homem com mãos, braços, pernas, unhas e dentes. Tenta tatuar-se em seu ombro, enquanto ele grita de dor e susto. Mas não a impede. Parece entender a mensagem implícita naquele gesto, que é quase uma oração. Cabelos e lágrimas se misturam. Sobre o Pégasus, Ana, Adriano e a letra A.

sábado, 31 de dezembro de 2011

Vinte Minutos

Por Vanessa Coutinho

   Interessante... O mar parecia furioso. Eu sabia que as emoções e afetos se digladiavam dentro de mim. Eu podia sentir as arenas, na altura do pescoço, do peito e em meu ventre. Era o aperto na garganta. O soco no estômago. O frio de uma lâmina na barriga. Mas essas coisas se projetavam como raios pelos meus olhos, e eu via o mar furioso. Imaginava com o quê se aborrecera. Conferia vida ao mar, como se fosse um bicho, um ser com instintos e pele, que pudesse arder. E me identifiquei com aquela enorme besta em fúria que, logicamente, só eu enxergava.
   Fiquei ali imóvel por um tempo que não sou capaz de definir. Talvez num leve transe de alguns instantes. Mas, se alguém me dissesse que ali permaneci por vinte anos, como uma estátua de pedra, catatônica, com a alma aprisionada apenas nos olhos, tal e qual uma criança pendurada na janela, eu não teria duvidado.
   - Desculpe, moça.
   Fui trazida de volta da imensidão do mar por um violento esbarrão. Quase caí, cheguei a perder o equilíbrio. Tolice... Como perder o que não se tem? Lembrei de uma comparação tola feita por mim há muitos anos...Queria provocar um amigo, sem tostão, que vendera sua companhia a uma mulher que não amava. Nesta mesma praia, comparei dois cães: um magro vira-lata e um poodle branco encoleirado. Eu disse que podia ler os pensamentos do poodle, e que ele invejava a liberdade do vira-lata. Se você não tem nada, o mundo nada pode lhe arrancar, e tudo o que vier será bem vindo...
   O menino que esbarrara em mim, e que fizera com que minha alma, que ocupava apenas os olhos, se deramasse de volta por todo o corpo, já ia longe. Devia ter uns quinze ou dezesseis anos, mas algo nele, que não identifiquei de pronto, me tocou fundo. Senti um gosto estranho na boca, um gosto de sal. Aos poucos o torpor se foi totalmente e, como quem desperta de um longo sono, soube que chorava, e o gosto estranho era das lágrimas que me alcançavam os lábios. Achei que, mais uma vez, comungava com o mar, porque o gosto das lágrimas, embora mais suave, fazia lembrar o gosto do oceano.
   Escorreguei pela areia como uma geleia disforme. O cheiro dos cabelos pretos do rapaz ainda estava vivo em minha memória. Nunca o havia visto, mas ele me era tão íntimo... Cheguei ao ponto onde podia sentir as gotas em minhas pernas. O que aquele rapaz me trouxe de tão conhecido? Cabelos negros? Não podia ser só isso. Ele me despertara. Arrancara-me da letargia. Pedira desculpas e se fora. E agora, provavelmente, nunca mais o veria. Era como se estivesse morto para mim. Ou eu, morta para ele. A morte era quase isso. Era quase nada. Era quase próxima. A água gelada me magoava os pés e tornozelos. Você me arrancou da letargia. Fez-me crer que era possível viver acordada. E agora? Não vejo mais seus cabelos negros. Lembrei novamente da história dos cachorros. De quem nada possui, nada a vida pode tomar. O aperto na garganta me fez sufocar. Instintivamente, levei a mão ao peito, e algo estava lá. O alfinete com uma rosa, que você me dera. Arranquei. Senti uma gota de sangue escorrer pelo peito. Joguei o alfinete no mar. De quem nada possui, nada se pode tomar. O mar agora estava de luto. Virei de costas para ele, de frente para o calçadão. Do rapaz, nem sinal. Morto parta mim. Eu, morta para ele. Olhei o relógio. Não havia se passado tanto tempo desde que saltei do taxi, disposta a ir até onde o mundo termina. Vinte minutos. Não quis olhar o mar de novo. Ele estava de luto. E eu estava viva.

sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

Fernando, Fernando

Por Vanessa Coutinho

   - Nando, você já viu alguém morrer?
   - Já.
   - E como é?
   - É feio.
   Calou-se Lorena por alguns minutos, suficientes para Nando entrar naquele estado entre sono e vigília, quando já os sentidos parecem nos abandonar e somos capazes de perder a noção do que é real e do que é imaginário, embora ainda não estejamos dormindo. E Nando viu Fernando. Não um espectro, uma sombra, mas Fernando inteiro e nítido, tal como era pouco antes de morrer. E viu que ele movia os lábios, aflito para dizer alguma coisa, mas não conseguia pronunciar nenhuma palavra. Nando arregalou os olhos. Ao seu lado, apenas Lorena, hoje tão parecida com Fernando dez anos atrás. Os mesmos olhos amendoados, os mesmos cabelos longos e lisos. A mesma ingênua perplexidade diante da vida.
   Lorena tinha o olhar fixo. Deitada ao lado de Nando, parecia observar sua própria figura no espelho do teto.
   - Nando, você viu meu irmão morrer?
   Ele não queria tocar nesse assunto. Todos os assuntos que ela quisesse, qualquer um, menos esse. Mas, nos últimos tempos, esse assunto parecia ter virado uma obsessão.
   - Por quê isso agora, dez anos depois?
   Ela tinha seu motivo para tocar no assunto maldito. No assunto proibido, que ficou sempre calado, como se, ao ficar calado, não fosse o grito mais alto de toda a sua vida. Ultimamente, vinha sendo assombrada pela lembrança do irmão. E pela lembrança do dia que tudo fora alterado, por alguma coisa terrivelmente maior do que ela, e até maior do que o pai e a mãe, que, na época, julgava os seres mais fortes do mundo. Tinha oito anos. Fernando, dezoito. A mesma idade do amigo inseparável. Difícil dizer qual dos dois era o mais bonito. Fernando e Fernando. Tão unidos que usavam, cada um, duas letras F penduradas em cordões de couro, como símbolo de amizade eterna. Hoje as quatro letras pendiam juntas, em uma grossa corrente dourada, do pescoço de Nando. Ao vê-las, Lorena não podia deixar de se lembrar das alianças de viúva no dedo da avó.
   Uma raiva contida, fruto de vários afetos misturados, começou a se manifestar em sua voz:
   - Você viciou o Fernando, não foi? Mas você mesmo nunca se viciou. Em nada. Nada nunca foi fundamental para você, você nunca se entregou a coisa alguma!
   Nando não respondeu. Mantinha abertos os olhos, porque se os fechasse, a imagem de Fernando, a voz de Fernando, os planos de Fernando, tudo lhe invadiria a mente, e não queria chorar. Não aqui, diante de Lorena. Lorena, os mesmos cabelos, os mesmos olhos...
   Lorena lembrava da época em que o pai chegava do trabalho todos os dias com um brinquedo, um chocolate ou uma revista em quadrinhos. O seu coração disparava de alegria quando ouvia a chave girar na porta. Parava o que estivesse fazendo para correr e se atirar em seus braços. E ele, depois de beijá-la por vários minutos, ia até a cozinha, onde a mãe preparava o jantar. Lá, enquanto os adultos conversavam, Lorena brincava ou lia. Mais tarde, chegava Fernando. Sempre muito quieto, muito silencioso. Em geral, trazia Nando, com seus olhos de um verde que, de tão belo, chegava a ser incômodo. Davam boa noite e iam para o quarto, ouvir música. Em certa ocasião, ela ganhou do pai um chocolate diferente, mais gostoso do que os outros. Quis dividi-lo com o irmão e, na ânsia de fazê-lo, esqueceu-se de bater na porta. O que viu, não recorda, acha até que não chegou a ver nada, foi tudo muito rápido. Mas Fernando brigou com ela, gritou, deu-lhe um tapa. Ficou tão magoada que nem conseguiu chorar. Engoliu o pranto e correu para seu próprio quarto, onde ficou absolutamente imóvel. Queria que o rapaz viesse até ela, para que pudesse explicar que apenas tentara fazer-lhe uma surpresa, dar-lhe um pedaço do chocolate. Mas ele não veio. Quem veio foi  Nando. E conversou com ela, contou-lhe coisas engraçadas. Depois, explicou que o amigo estava nervoso, não havia feito por mal. Nenhum dos dois sabia que a explosão de Fernando marcava o início do caos. E que, no caos, se solidificaria a aliança iniciada exatamente ali, naquele momento. Todo o resto ruiria. E a sua constatação mais perversa era a de que o irmão fora a perda menor que tivera. Com ele, havia sido sepultada a promessa de uma vida feliz. Pois feliz era a vida até então, talvez porque pintada com a cor de seus oito anos, que não exigiam muito para ser plenos. Mas sempre haveria a marca de um dia em que tudo mudou. E essa marca, agora, clamava por um sentido.
   No dia em que tudo mudou, acordou com o choro da mãe. Era madrugada, as janelas não tinham sido abertas. E nunca mais seriam. O pai, sentado no sofá, de pijama ainda, olhava para o nada. Há dez anos, como hoje. Ainda hoje, o pai olha para o nada. Depois daquele dia, se recolhera a seu próprio interior, e não fora mais trabalhar. Nunca mais trouxera doces, brinquedos ou revistas. E nunca mais a beijara.
   - Você estava com meu irmão quando ele morreu?
   - Chega!
   Ele gritava. Pela primeira vez, gritava com ela. Mas ela não recuou. Certas coisas, quando começam, não podem ser interrompidas.
   - Estava sim! Esse é o segredo que você guardou esses anos todos!
   Nando calado, os olhos fechados para não ver Lorena. De olhos fechados, só via Fernando. O que ela sabe sobre segredos guardados por muitos anos?
   Lorena falava, falava, falava. Compulsiva e estridentemente. Nando não suportava mais. Levantou a mão enorme. Queria calá-la, só isso. Não, não era só isso. Queria machucá-la, provocar nela uma dor, como a que ela estava lhe provocando agora. Lorena, os olhos fixos nos seus, não moveu o rosto um só milímetro. Aguardou o tapa, mas não havia provocação nem medo. Havia a inconsequência típica daqueles que não têm noção dos riscos. Até nisso, igual a Fernando.
   Mas ele não pode. Sentiu, apavorado que, se começasse, seria capaz de matá-la. Como, se a amava, mais do que tudo na vida? Seus olhos, seus cabelos, sua inconsequência? Angustiado, procurou algo em volta para descarregar sua fúria. Nada havia, além das roupas espalhadas pelo chão. Sem pensar, arrancou do pescoço o cordão e atirou-o contra a parede, revestida de espelhos, que se quebraram com a violência do impacto.
   Lorena havia se calado. No peito do homem à sua frente, parecia maior a cicatriz em forma de cruz decorrente da ferida feita à navalha, no dia em que Fernando morreu. Ele mesmo se marcara. Por quantas vezes dormira com ele, vendo sem ver aquela marca horrenda? Por quê agora tudo começa a fazer sentido? O pai, embora vivo, não vivia. A mãe, nem de longe lembrava a bela mulher que um dia fora. Parecia ter se consumido em culpa. O que teria acobertado, na época, para cultivar tamanha culpa? Lorena começou a chorar, por não conseguir impedir a si mesma de conhecer coisas que preferia desconhecer. Descobriu que não queria certezas. Queria dúvidas, com as dúvidas podia conviver. Observou Nando, nu, ajoelhado sobre os cacos de vidro, ferindo pernas e mãos, a procurar as quatro letras F, que se libertaram e se separaram no momento em que o cordão esfacelou o vidro. Viviam atados pela força de uma ausência, que se impunha há dez anos, tempo demais. Se tivesse ânimo teria pedido a Nando que deixasse as letras livres, não as amarrasse novamente. Só ela sabia que esperava um filho. Enquanto recolhia suas roupas, pensou no quanto a vida pode ser cruel.

quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

O Senhor do Tempo

Por Vanessa Coutinho

   Olhou o relógio pendurado na parede da sala. Cinco horas. Pensou em passar um café. Uma recordação fugidia lhe trouxe a imagem da mesa posta. Rápida, se foi, como esta mosca que escapou pelo corredor. "Por quê há tantas moscas aqui? Desagradável conviver com elas". Tentou resgatar o pensamento anterior. Fechou os olhos e viu apenas inúmeros pontos pretos esvoaçantes. "Malditas moscas! Estão até dentro da cabeça!". Paciência... O pensamento estava perdido. Isso vinha acontecendo com frequência. Sua mente produzia os pensamentos e eles se lançavam fora, rompendo a linha de ligação. Lembrou dos botões do pijama, que caíam e se perdiam, quando a linha se rompia. E ele, a perder pensamentos como quem perde botões. Riu da própria comparação, e espantou-se: que som estranho havia adquirrido seu riso! Meio rouco, feio até. Não conseguiu conter uma discreta olhada para os lados, como a certificar-se de que a assustadora risada não viera de alguém que pulara a janela e invadira sua sala, achando graça da comparação dos botões. Agora, já não tinha certeza de haver apenas pensado; talvez tivesse falado em voz alta. Mas por que teria falado, se mais ninguém estava em casa? Há uma eternidade mais ninguém estava em casa...
   Enquanto conjecturava a respeito do som do riso, foi andando pelo corredor, seguindo o caminho das moscas. A estante estava empoeirada. Como podia viver com tanto pó? Talvez por isso sentisse, às vezes, certa falta de ar. O relógio dourado marcava meio-dia. Já almoçara? Não, com certeza não almoçara. Não almoçava mais, ia somente roendo pedaços de biscoitos e frutas, que encontrava sobre a mesa da cozinha. Aliás, frutas sempre frescas, alguém se ocupava em deixá-las. Laura? Um súbito desconforto lhe tomou, na forma de um esvaziamento, como se seu espírito escapasse pelos ouvidos, e o corpo, oco, estivesse prestes a tombar. Com as mãos na parede, trêmulo, assegurou-se de que o espírito não partira, mas já não sabia o que havia provocado tamanho mal-estar. O pensamento havia se lançado fora. Cada vez mais rápida, essa fuga...
   Calculou a urgência de chegar ao quarto. Nunca percebera o quanto o corredor era comprido. Com alívio, alcançou a cama. Deitou-se, ao lado da gatinha, que nem se moveu. Era uma benção, a presença dessa gatinha. Por isso, não se incomodava com o fato de que dormisse sobre a cama, ou mesmo arranhasse os sofás, de vez em quando. Além do mais, era independente, ia para a rua buscar a própria comida quando sentia fome. Se fosse um cachorro, dependeria dele para alimentar-se. Sabia que havia tido um cachorro quando jovem. O que teria acontecido com ele? Que tolice (e riu novamente, mas o riso ficou abafado por um soluço). Se tivera um cão na juventude, ele agora estava...morto. Morto. Como será estar morto? E, na sequência desse questionamento, sentiu-se de novo tonto pela galeria de rostos que invadiu sua mente. De onde sairam tantos rostos e vozes e nomes?
   O relógio digital na cabeceira mostrava: quinze horas e vinte e três minutos. Não havia um comprimido às três da tarde? Pensou no sobrinho médico. Sabia que o julgava caduco, dizia que cada relógio da casa marcava uma hora diferente. Sugeriu acertá-los, para que todos mostrassem a hora correta. A hora correta? Qual é a hora correta? O sobrinho é um tolo, escravizado pelo tempo, que vai lhe tomando coisas, comendo pelas beiradas, porque quer tomar-lhe a própria alma. O tempo é como uma bruxa velha, a exigir sacrifícios que aplaquem sua fúria. O tempo pensa que é Deus. "Aqui o tempo não manda nada. Quem manda no tempo sou eu". O sobrinho costumava olhá-lo com cara de poucos amigos e pouca paciência. Passava a mão naquela cabeleira totalmente branca, surpreendente em um rapaz tão jovem. Quantos anos poderia ter? Vinte e três? Vinte e cinco no máximo. Percebeu que a cabeça doía, os braços pesavam. Todos achavam-no meio doido desde que Laura...
   Laura... Onde estava Laura? Por quê nunca mais sentaram-se juntos para o chá? Uma outra lembrança tentava, à toda força, rasgar as resistências e vir à tona. Sabia que se lançaria fora como as outras, mas não queria os rastro das sensações que lhe provocaria no corpo...
   A gatinha se moveu. Abençoada gatinha. Quis falar com ela, enquanto afagava seu pelo desgrenhado e sujo. Não teve certeza de ter conseguido pronunciar as palavras:
   - Aqui não é o tempo que manda. Quem manda no tempo sou eu.
   Com dificuldade, elevou o braço até poder enxergar o punho. Seis horas. Fez o sinal da cruz, em silêncio. Tirou o relógio de pulso, delicadamente. Ouviu seu som cadenciado. Apreciou o marcador de algarismos romanos. E fê-lo parar.